A importância de “Carmilla – A vampira de Karnstein”

Afinal, quem é essa vampira que rouba o coração -metaforicamente falando, infelizmente- de leitores góticos, LGBTQIAPN+ e outros? Recebendo destaque pela sua representatividade atemporal e pioneirismo, a obra literária ‘Carmilla- A vampira de Karnstein’ é uma novela de ficção gótica do escritor Joseph Sheridan Le Fanu. Esta, foi publicada originalmente em capítulos, nos anos de 1871 e 1872; 26 anos antes da publicação de ‘Drácula’, da qual diversos pesquisadores afirmam inspiração – apesar das datas, o vampirismo na literatura já estava presente no século XIX, com poemas e outras publicações. Ainda, a obra demonstra várias características da Era Vitoriana, período correspondente ao reinado da rainha Vitória de Hanover, entre os anos de 1837 e 1901, onde o Império Britânico chegou a seu auge, com o desenvolvimento industrial, a expansão do império colonial e a evolução política interna, tornando-se uma hegemonia europeia; mas em Carmilla, mostra o comportamento feminino e contexto religioso da época. 

Antes de tudo, o que é o gótico? Anterior a entender o termo ‘gótico’, é necessário entender que esta é uma ‘subcultura’, advinda da terminologia ‘cultura’. Cultura pode ser caracterizado como conjunto de expressões de um povo e ‘subcultura’ pode ser rapidamente definida como parte de uma cultura que possui diferenciais de crenças, normas e padrões por parte de uma população. O termo gótico é muito diversificado em seu conceito, inicialmente ele advém da conotação negativa com o termo ‘godo’ (tribos germânicas); do renascimento com intenção de ofender “[…] já que o período medieval remete às trevas, visto como bárbaro e atrasado, ao passo que o gótico é depreciativo” (‘O anjo do lar x FemmeFatale: a representação da mulher vitoriana na obra Carmilla, de Le Fanu‘, p,244); posteriormente atrelado ao estético e artístico, tendo destaque na literatura romântica. Ainda pode-se dizer que é demarcada pelo sombrio e macabro, feminino, elementos de criatividade, teatralização, ideais políticos de anticapitalismo e anticonsumismo; e por fim, melodias sombrias, melancólicas e romantismo.

Para falar sobre a literatura gótica, temos uma importante publicação que enriquece o conhecimento nesse tema, o livro ‘Gótico Americano’ – organizado por Michael Sanches e traduzido por Carla Benatti, publicado pela editora Pandora em 2022- onde fala de elementos góticos “presença do sobrenatural, obscuridade, ambiente decadente (ruínas, igrejas antigas,castelos, mansões etc.), melancolia, exacerbação romântica – foi chamada de ‘literatura fantástica’”. Ainda na introdução, fala-se como o início da literatura gótica foi no Oeste Europeu no século XVIII e principalmente no século XIX com comes como ‘O castelo de Otranto’, ‘Carmilla’, ‘Drácula’ e ‘Frankenstein’. É importante lembrar que houve divergências com o uso da nomenclatura gótica para a literatura, mas em conclusão, “O que antes pensava-se ser uma legitimação da cultura colonialista, passou a ser tida como ‘uma reivindicação do lugar da literatura latino-americana no cânone da literatura global”. A obra literária é muito importante para o conhecimento da literatura gótica no contexto da América, pois conta com autores da América do Norte (EUA: Nathaniel Hawthorne, Henry James e Edgar Allan Poe), da América Central (Honduras: Froylán Turcius) e da América do Sul (Uruguai: Horacio Quiroga, Chile: Vicente Huidobro e Brasil: Augusto dos Anjos e Machado de Assis. Por fim, é possível encontrar -principalmente- na literatura gótica temáticas de medo, horror, beleza, contemplação da melancolia e da obscuridade.

É incabível não reconhecer a figura do ser mitológico ou folclórico que se nutre através da essência vital de criaturas vivas, sugando seu sangue e vitalidade. Esses seres surgem na Europa Ocidental no final do século XVII e início do século XVIII , se popularizando no século XIX, com o aumento de superstições vampíricas europeias. O termo ‘Vampiro’ tem originalidade diversa: francesa (‘vampire’), alemã (‘vampir’) e sérvio (‘вампир/vampir’). Estes, estão presentes em várias culturas populares e com suas características definidas de forma divergente, porém as narrativas mais famosas possuem características majoritariamente do sudeste da Europa. Logo no início do livro é falado que “Na maioria das representações, os vampiros são ‘mortos-vivos’, ou seja, revividos de alguma forma após a morte. Quando o sol começa a despontar, ele deve voltar para seu túmulo ou caixão. Suas vítimas também de tornam vampiros depois que morrem.” (Carmilla, p.9)    

 A respeito do pioneirismo de ‘Carmilla – A vampira de Karnstein’, é dito que “Ainda que ‘Drácula” seja, indiscutivelmente, a obra mais importante da ficção vampírica, trazendo as características que se enraizaram no imaginário popular como: vampiros com habilidades sobrenaturais, que incluem desde controle da mente até mudança de forma; uma linhagem nobre e aristocracia; e uma origem leste europeia, ‘Carmilla’ é inovador pelo caráter enigmático dado à personalidade do vampiro, do qual muito se valerá a personagem de Stoker.” (Carmilla, p.10); é destacado também o estabelecimento da vampira ‘FemmeFatale’.

Sobre o autor, Sheridan Le Fanu: ele foi considerado como ‘o pai da história fantástica’, teve seu nascimento em Dublin, Irlanda, em 1814, iniciando sua escrita aos 14 anos. O irlandês possuía grande afeição pelo sobrenatural, se divergindo da moralidade do período vitoriano; e sua vida literária foi marcada por obras de mistério e horror. Tem sua vida literária principalmente marcada pela publicação do livro Carmilla.

Sendo importantíssimo, também, na representação de uma personagem feminina quase que indiscutivelmente ‘fora do armário’; fazendo papel importante para a comunidade lésbica e LGBTQIAPN+. Com sua indiscutível representatividade feminina e queer, inclusive caracterizada por muitos como um romance lésbico; o livro mostra as duas personagens principais em uma atração e paixão mútua, enquanto que a vampira de karnstein não esconde sua admiração, a inocente Laura tende a fugir de seus sentimentos – mesmo com tudo isso, há afetos descritos.

Em ‘Carmilla – A vampira de Karnstein’, o escritor dá a vida a uma ficção sobrenatural, onde seguimos a narração de Laura, uma menina que mora com o pai em um castelo na Áustria; refém da sua isolação e demonstra inocência ao decorrer da trama. A chegada de uma desconhecida moça -vítima de um acidente de carruagem em um passeio com sua mãe próxima às habitações de Laura- faz com que a jovem desenvolva uma atração misteriosa pela conseguinte hospedeira de seu castelo: Carmilla. A habitação da Carmilla é abordada às pressas, ao mesmo tempo que apressadamente sua mãe segue para uma viagem de três meses -igualmente banhada pela ausência de explicações. É impossível não comentar sobre como a narradora transpassa admiração pela recém-chegada, ao mesmo tempo que se comove para não deixar esse sentimento exalar, pois possui crenças cristãs pela sua criação. Com a convivência ‘obrigatória’, a jovem angelical e a FemmeFatale viram companhia uma da outra, passeando juntas para todos os lugares e alegrando os dias de cada uma. O que a Laura enxerga com uma boa amizade, Carmilla não se contém em esconder seu grande carinho, onde rotineiramente faz declarações ao ‘Anjo do lar’ e acalenta a jovem com abraços e beijos. Ao decorrer da novela, é possível perceber que a personagem vampiresca possui óbvia preferência por mulheres; como também a percepção de que a atração é mútua, mesmo que Laura não se sinta confortável nesse papel.

É tarde que anuncio: a escrita aqui produzida infelizmente possui ‘spoilers’.

O documento literário da famosa vampira de Karnstein possui uma leitura rápida, até simples para aqueles que já estão um pouco acostumados com livros vampirescos; com 16 capítulos e aproximadamente 120 páginas.

De início, logo é mostrado as características da moradia isolada de Laura em um castelo e sua indiferença com a quantidade significativa de dinheiro que possuem. A narração detalhista faz com que o leitor se aproxime do local e dos personagens descritos, banhado de melancolia, romantismo e diversas vezes postura religiosa por parte da angelical narradora. Laura fala da sua vida social como restrita e solitária, acalentada pela presença do pai e babás. Mas para balancear a vida da menina, uma vampira faz uma aparição para ela logo em sua infância, fazendo que ao mesmo tempo a situação seja assustadora e acalentadora; características que podem revelar o resto da trama, pois a presença -posteriormente- de Carmilla em sua vida demonstra essas mesmas emoções. Logo após, acontece uma misteriosa morte de uma moça justificada por uma atividade espiritual; seguida – propositalmente, será? – pela aparição da jovem recém despertada e confusa, recebida pelos aposentos do castelo e caloroso anseio de Laura. Ao decorrer da novela, a jovem religiosa se mostra admirada – até demais – pela recém chegada, “Eu me senti, como ela disse, ‘atraída por ela’, mas também havia uma espécie de repulsa. Nesse sentimento ambíguo, contudo, a sensação de atração prevaleceu imensamente. ela me interessou e conquistou. Era tão linda e tão indescritivelmente envolvente.” (Carmilla, p.42). Seria impossível a principal não estranhar a presença da moça que lhe envolvia em sentimentos confusos, Carmilla se apresentava tardiamente e com diversas falas envoltas pelo sombrio e misterioso; supria necessidade de aproximação com a narradora; repudiava a religião como ninguém mais; tinha grande semelhança com uma pintura antiga – quase como se ela fosse tão velha quanto essa. E, impressionantemente, Carmilla demonstra adiantar sua partida, seguida por acontecimentos questionáveis ao redor do local; as buscas pela jovem – questionável, não? Quase como se representasse como uma figura vampiresca – faz com que os habitantes do local passem por mais mistérios e descobertas importantes. Por fim, vê-se a interpretação dos acontecimentos de forma mais esclarecida, a presença da vampira, a linhagem de sua família Karnstein e os acontecimentos vampirescos; finalizando com a imagem ambígua de Carmilla. O romance dessas duas jovens, apesar de distintas e confusas, tem um óbvio romance impressionante; a afeição de duas mulheres de forma tão significativa e vampiresca justifica sua popularidade.

Para enriquecer a discussão da obra, falarei sobre a importante publicação de Tatiana Souza e Swedder Souza na ‘Revista de Literatura, História e Memória’: “O anjo do lar X Femmefatale: a representação da mulher vitoriana na obra Carmilla de Le Fanu”, onde analisou o debate da mulher vitoriana, a figura meiga do ‘anjo do lar’, a imagem da FemmeFatale e os padrões sociais da época. A pesquisa logo de início mostra a personagem da vampira Carmilla como FemmeFatale, “é a mulher que rompe com os grilhões da moral, ela não é uma mulher que vai dar continuidade a vida, ela vai viver em busca dos seus desejos, vai viver a vida que a mulher representada pelo ‘anjo do lar’ anseia em seus pensamentos” (p.242) e consequentemente – e até propositalmente – a personagem de Laura como ‘anjo do lar’, aquela que se mostra com pureza, angelicalidade, submissão da religião e do homem e da sociedade. Mais adiante, as autoras afirmam o que já foi dito “[…] porém ‘Carmilla’ é a primeira obra que o mito do vampiro é representado pela figura feminina” (p.242). A publicação destaca pontos como: o cenário comum na literatura gótica, lugar primitivo e isolado; seres sobrenaturais que remetem ao obscuro e misterioso; pensamentos dos personagens em contraste com a religião, pois o autor utiliza a obra para criticar a política e a sociedade em geral. Bem como o período vitoriano, pois Laura possui postura dos padrões sociais desse período, demarcadas com: seu castelo isolado da sociedade, a notória moral cristã e a proximidade com a igreja. Com isso, Laura é representada com o ‘anjo do lar’; a imagem da mulher vitoriana, banhada pelo seu conservadorismo e submissão, “pureza angelical, delicada, frágil, assexuada[…] aquela que foi criada para ser submissa ao homem e a sociedade conservadora.” (p.248); e religiosidade, dependência de outro alguém e boa postura -bem como boa aparência. Em contraste, Carmilla é retratada como ‘FemmeFatale’: pela sua libertação sexual e rompimento de padrões vitorianos. Conclui falando que “Porém, sua morte acaba legitimando ainda mais o poder patriarcal, uma vez que a mulher, nessa sociedade vitoriana, não pode abdicar de suas obrigações impostas pela sociedade, mas, sim, que perpetue e continue a aceitar sua posição enquanto mulher submissa, seguidora dos preceitos ditados pela religião, pela sociedade patriarcal e pelo homem, fazendo com que a representação de sua morte, dê fim a toda sua luta.” (p.259)

Por este texto, é impossível conhecer por completo ‘essa vampira que rouba o coração -metaforicamente falando, infelizmente- de leitores góticos, LGBTQIAPN+ e outros’ (como falado inicialmente), mas através deste é possível obter um empurrãozinho, não é? Ou até mesmo refletir sobre pontos que podem ter passado de lado ao se aprofundar na obra.

Para reconhecer a influência da publicação do autor Sheridan Le Fanu sob o mundo, vê-se as diversas publicações do mesmo livro, adaptações cinematográficas, influências para a literatura.

Por fim, indicações de músicas que podem mergulhar leitores na publicação literária (não necessariamente todas definidas como góticas, mas todas podem acalentar o coração do leitor com Carmilla):

Bela Ramos M
Bela Ramos M
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