Ana e o Poeta: um Amor que atravessa o tempo (conto interativo)

Ana Amélia Ferreira do Vale e o poeta Antônio Gonçalves Dias (Fontes: Instituto Moreira Salles e Wikimedia Commons).

Corria na Grande Ilha o ano de 1904. Na manhã do dia 3 de novembro, São Luís despertava em festa, aos sons de música e fogos de artifício sobre o Largo dos Amores. Mais abaixo, a baía em todo o seu esplendor emoldurava a solene celebração. Na praça Gonçalves Dias, do alto da representação de uma enorme palmeira, pairava a figura do insigne escritor, o ilustre homenageado daquela cerimônia, a fitar com seus olhos de pedra as águas profundas do Atlântico; seu derradeiro e secular local de descanso. 

Seguiu-se à alvorada um cortejo pelas principais ruas da capital. E à medida que perpassava os caminhos de cantaria, o som das bandas e dos passantes ia enchendo cada beco, ladeira e travessa.

Mais adiante, ainda distante daquela movimentação, estava a rua Coronel Colares Moreira, nas proximidades do Campo D’Ourique. Ali, do interior de um vistoso casarão, ouvia-se um outro tipo de som, suave e melodioso: o som de uma bela canção executada ao piano. Ultrapassando, pois, a janela entreaberta e os arcabouços do edifício, tomando um caminho pelo qual somente a narrativa é capaz de transportar, chega-se enfim à presença da ignota musicista: uma mulher de pele clara, cabeleira alva presa para o alto num coque, sentada diante do piano, de costas para a janela, sob o dossel de elevadas arcarias. Por outro ângulo vê-se melhor o seu rosto, uma face vincada pelas marcas da idade, mas nem por isso menos bela; os olhos, escuros e expressivos, atentos à partitura, a mão, pigmentada por manchas senis, alternando-se entre as teclas e o desfolhar das páginas sobre o atril.

Aos 73 anos de idade, Don’Ana conservava o mesmo olhar suave e as mesmas habilidades musicais que, em sua mocidade, haviam suscitado grande admiração e louvores. Como na ocasião em que aquele mancebo enamorado escreveu-lhe um poema, e o fez publicar nas páginas dum jornal. Versos apaixonados que seriam para sempre uma doce lembrança! De fato, a poesia e a música sempre estiveram presentes na vida da senhora. Embora obviamente, nem de longe a juvenília do rapazote pudesse se comparar à maior e mais sublime experiência do seu coração, àquela que fora para ela fonte de alegrias e de tormento: uma história de amor que transcendia o próprio tempo. O amor entre Ana e um certo Poeta.

Quando conheceu O Poeta, ela tinha quase 15 anos; ele, 22. Era, em muitos aspectos, ainda uma menina: usava a barra das saias um pouco elevadas, os cabelos escuros meio presos por uma fita de cetim da cor do céu. Lembrava-se com exatidão da primeira vez em que ele em sua casa estivera: foi a convite de seu cunhado Teófilo, marido de Mariquinhas, sua irmã mais velha. Natural de Caxias, o rapaz foi prontamente acolhido pelos amigos em sua estada na capital, e não tardou a cair nas boas graças do Sr. Domingos e de D. Lourença, pai e mãe da moça. 

Todos, inclusive a própria Ana, apreciavam a companhia do jovem bacharel com aptidão para a lira. Em quantas tardes não era visto a participar em jogos e outros divertimentos juntamente com ela, as irmãs e toda a família? De quantos momentos aprazíveis não desfrutaram, embalados pelos acordes harmoniosos do piano?

Em mais de uma ocasião, chegou O Poeta a homenageá-la com versos. Ele intitulou A leviana aquele em que falava sobre sua personalidade:

         […]

Tu és vária e melindrosa,

Qual formosa

Borboleta num jardim,

Que as flores todas afaga,

E divaga

Em devaneio sem fim.

   […]

Já em Seus Olhos elogiava aquela que talvez fosse sua característica mais marcante:

[…]

Seus olhos tão negros, tão belos, tão puros,

De vivo luzir,

São meigos infantes, gentis, engraçados

Brincando a sorrir.

[…]

 Algum tempo depois, no entanto, fez questão de esclarecer o gesto, negando qualquer sentimento platônico pela moça. “É certo, porém que isso foi uma brincadeira, de que eu me arrependi um quarto d’hora depois de a ter feito”, escreveu.

A temporada do Poeta com a família findou-se, e ele partiu para a Corte. Nesse ínterim, alguns anos se passaram; a menina dos versos e folguedos tornou-se uma mulher. E tão logo encontraram-se novamente, um novo e belo sentimento surgiu entre ambos. Haviam chegado ao ano de 1851, quando a linda Don’Ana, em seus vestidos de crinolina, seus olhos inesquecíveis e seu talento ao piano, era figura constante pelos salões ludovicenses. Ana e O Poeta, uma vez mais trocaram olhares. Trocaram amenidades, gracejos, risos… e desta vez, trocaram juras de amor! Mais tarde, o moço retornaria ao Rio de Janeiro, mas determinado a pedir sua mão em casamento; e assim fez.

Poderia ser este o bonito e definitivo capítulo de uma perfeita narrativa romântica. Mas como na vida deleite e dissabor caminham lado a lado, desfez-se em pouco tempo o encanto: foram-se a fraternidade e a boa convivência, para dar lugar às faces horrendas da discriminação e da hipocrisia. Domingos e Lourença não se opunham a acolher aquele jovem, filho ilegítimo, sem sobrenome e acima de tudo, mestiço, descendente direto de indígenas, como grande amigo e hóspede. Mas para eles era algo completamente diferente, inimaginável, tê-lo como um dos seus, casado com sua mui amada filha. O que a sociedade diria a respeito?

Ana protestou, resistiu com tenacidade à reação dos pais. Como ela desprezava, abominava, as convenções daquela sociedade tacanha! Estava disposta a perseverar pelo amor sincero do Poeta. Ela o teria seguido, teria deixado aquela vida economicamente estável para trás, se casado com ele e o acompanhado, se ele lhe tivesse pedido. Mas, em vez disso, diante da recusa dos familiares, viu com tristeza seu amado declinar.

A partir dali, as vidas de ambos tomaram rumos distintos. Casaram-se: ele, com uma moça de nome Olímpia. Ela, ressentida com a família, casou-se com Domingos Porto, também mestiço e nascido em berço humilde. Ao lado de Domingos, Ana passou por privações, mas lutou intrepidamente. Como teria lutado ao lado daquele outro cavalheiro, cujo nome e existência intentava apagar dos pensamentos. “O melhor a fazer é removê-lo em definitivo da lembrança. Folgo em saber que não o verei mais!” 

Engano seu. Quem poderia imaginar que em 1854 encontrar-se-iam casualmente em Lisboa, num jardim público? Estava visivelmente abatido; decerto já andava doente. Olhou de soslaio, tentou não esboçar reação, mas sem sucesso. Como ela viria a saber mais tarde, foi logo após aquele encontro que ele, servindo-se da pena e do tinteiro, escreveu Ainda Uma Vez – Adeus!-

[…]

Enfim te vejo! — enfim posso,

 Curvado a teus pés, dizer-te, 

Que não cessei de querer-te,

 Pesar de quanto sofri. 

Muito penei! Cruas ânsias, 

Dos teus olhos afastado,

 Houveram-me acabrunhado 

A não lembrar-me de ti!

[…]

Jamais voltariam a se encontrar. Uma década inteira se passou. Um dia, chega aos ouvidos de Don’Ana, nesta ocasião já viúva e mãe, uma notícia devastadora. A palavra “naufrágio” e os nomes “Ville de Boulogne” e “Gonçalves Dias” fazem seu sangue gelar. “Talvez não seja verdade”, tenta consolar-se. “Uma notícia igual já havia sido veiculada antes, e afinal, tratava-se apenas de um boato.” Mas desta vez não o era. Todos a bordo sobreviveram, à exceção dele, debilitado por sua enfermidade. Ana sentiu a cabeça anuviar, um grito de dor abafado a constringir a garganta. Uma lágrima furtiva saltou à órbita, atingindo em cheio a barra do vestido de pano escuro. 

Lágrima semelhante agora, quarenta anos mais tarde, descia a face da idosa Ana Amélia, já de pé, de costas para o piano, a observar a banda e o cortejo passarem pela rua, relembrando a vida e a obra do seu amado Poeta. Oculta à vista de todos no interior daquele casarão à rua Coronel Colares Moreira, onde viviam a filha, o genro e os netos, acompanhou a tudo pela fresta da janela, através do cortinado diáfano. Na face, um sorriso sutil e o olhar marcante. Os olhos se fecham para que a mente vagueie pelos labirintos da memória. As névoas do tempo vêm e vão sobre a existência de Don’Ana. 

Num futuro distante, sob as luzes do ocaso, nas areias duma praia qualquer (não por acaso na Ilha do Amor), Ana e O Poeta se reencontram; trocam olhares, dão as mãos. Estão juntos, finalmente! Desta vez, para sempre.

Vitor Daniel
Vitor Daniel
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Um comentário

  1. Parabéns!Gosto muito da história deles. Esse conto foi lindamente escrito e com um final maravilhoso, algo que já tinha imaginado para esse casal.

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